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Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso

 

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BAGDÁ, A METRÓPOLE DO CALIFADO ABÁSSIDA

 

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Bagdá, no século X, era o centro intelectual do mundo.  Como a capital do califado, Bagdá tornou-se, também,  a capital cultural do mundo islâmico.

Nossa proposta é mostrar, bem sucintamente, o papel que essa região desempenhou na transmissão do conhecimento da antiguidade, na evolução do comportamento religioso e no florescimento da literatura árabe. Homens de letras e de ciência, independente de nacionalidade e religião, reuniram-se nessa cidade, seja pela afinidade cultural ou porque foram convocados pela corte do califa por seus méritos ou competência.

Foi feito um esforço para manter a língua e a religião num nível cultural indispensável. Na verdade, era um único objetivo:  estudar a estrutura e as regras da língua do Alcorão, a fim de que esse idioma fosse respeitado e compreendido. Importante citar Khalil, o inventor da prosódia arábica, o primeiro autor de um dicionário, e, principalmente, seu aluno Sibawaih, que codificou definitivamente todas as regras gramaticais. Mubarrad, mais tarde, escreveu um trabalho que é uma valiosa coleção de citações poéticas. Também partilhou com seu rival contemporâneo, Tha'lab, da honra de ter contribuído para treinamento filológico de muitos poetas.

Alguns autores escreveram a biografia de Mohammad num sentido geral, incluindo a literatura dos hadices.  Os nomes de dois dos primeiros autores nessa categoria, devem ser lembrados: Mohammad ibn Ishaq e Ibn Hisham. Dois dos fundadores das quatro escolas de jurisprudência viveram em Bagdá e excercearm uma influência decisiva por longo tempo. Abu Hanifa já é conhecido por causa de sua participação material na fundação da cidade. Ele teve o mérito de integrar ao formalismo da lei um elemento vivo, que consistia de um método analógico e, quando necessário, um bom senso pessoal. Seu túmulo ainda é venerado em Bagdá. Em oposição a este tipo de pensamento, acha-se Ibn Hanbal, cujos seguidores foram bastante conhecidos nos primeiros séculos da cidade de Bagdá. Este austero tradicionalista foi, talvez, vítima de seu próprio trabalho, que nada mais é do que uma coleção de hadices. Na verdade, chegou a considerar a tradição, depois do Alcorão, como a única fonte da lei. Um inimigo feroz de toda inovação, Ibn Hanbal criou uma escola puritana dentro do Islam, e que hoje ainda inspira as pessoas da Arábia Saudita.

Os primeiros comentários sobre o Alcorão foram escritos em Bagdá. Os círculos religiosos foram afetados por um movimento contemplativo, iniciado pelos mutazilas. O mutazilismo pregava, essencialmente, que Deus era um Ser Perfeito, sem qualquer atributo além de sua unicidade. Essa convicção levou os crentes a negarem a eternidade da palavra de Deus, e, assim, para eles, o texto do Alcorão era uma criação da Divindade. Essa doutrina, com todo o seu apelo à razão, foi particularmente importante porque três califas a impuseram oficialmente ao povo e de uma forma autoritária.

Além disso, o espírito religioso seria minado por Jahiz e, mais violentamente por Razi. Foi durante este período que o doutor em leis, Ash'ari, surgiu das fileiras dos mutazilas. Ele dominou e unificou definitivamente todas as futuras crenças do Islam, e suas idéias durante o período seljúcida tiveram aprovação oficial.

Durante dois séculos, o fermento intelectual não diminuiu por um único instante. Mamun foi o califa que mais fez pela expansão cultural de Bagdá. Ele buscava o conhecimento onde estivesse, manteve relações com os imperadores de Bizâncio, escolheu os melhores tradutores para traduzirem os trabalhos de Aristóteles, Hipócrates, Galeno, Euclides, etc. Mamun cercou-se de eruditos, tradicionalistas, teólogos racionalistas, gramáticos, analistas, etc.

A observação astronômica iniciou-se em Bagdá; peritos dedicaram-se a medir o ângulo elíptico e a fixar a posição das estrelas; al-Farazi foi o primeiro no mundo árabe a fazer astrolábios.

O ocidente devia publicamente expressar sua gratidão aos eruditos do período abássida, que ficaram conhecidos na Europa durante a Idade Média, por seus estudos e descobertas. 

Mamun fundou em Bagdá a Casa da Sabedoria, inspirada na universidade persa de Jandaisapur, e logo tornou-se um centro científico atuante. A enorme biblioteca da Casa da Sabedoria foi enriquecida com as traduções das obras gregas promovidas por ele. Sábios de todas as raças e religiões eram convidados a trabalhar ali. Eles se preocupavam em preservar a herança universal, e não apenas a muçulmana. Os mais qualificados especialistas vieram para Bagdá de todas as partes de império. O que não faltava eram homens talentosos, trabalhando para descobrir o pensamento da antiguidade.

Harun al-Rashid, pai de Mamun, teve um particular interesse pelos médicos que chegavam à capital. Os que tinham ficado famosos durante o período dos primeiros califas em Bagdá, tinham sido estudantes na universidade persa de Jandaisapur. A biografia de um desses médicos indica que o exame de urina era uma prática comum naquela época.

Cabe mencionar o homem a quem a ciência arábica deve muito, o homem que pode ser chamado de pai da medicina árabe, Hunain ibn Ishaq, um cristão. Ele traduziu diversas obras e também dirigiu um equipe de sábios. Seu entusiasmo foi responsável pelo grande progresso na área. Ao criar termos filosóficos e médicos ele possibilitou a criação de uma linguagem científica. Graças a ele,  e a seus colaboradores, os autores árabes produziram uma cultura progressista por um século ou dois. No campo da ética e da moral, sua escola foi a primeira a traduzir o Juramento de Hipócrates.

Razi foi um físico conceituadíssimo na Europa medieval. Sua obra no campo da medicina foi ampla. Kindi, que passou à posteridade como o "filósofo dos árabes", viveu em Bagdá neste rico período intelectual. Desempenhou funções como tradutor, professor e astrólogo. Foi o responsável por conciliar as posições de Aristóteles e Platão. O sucessor de Kindi, Farabi, que viveu nos anos seguintes na corte dos príncipes hamdanidas em Alepo, estudou em Bagdá. Continuando os passos de Kindi, ele afirmou a semelhança entre os pontos de vista de Aristóteles e Platão. 

Nesse meio tempo, a indústria do papel nascia. Depois da Batalha de Talas, no vale de Ili, ao final do período omíada, um prisioneiro de guerra chinês foi trazido a Samarcanda. Lá, ele começou uma indústria de papel, usando linho e cânhamo, que imitava o que ele tinha visto em seu próprio país. Em 795, há menção à criação da primeira fábrica de papel em Bagdá. Por um longo tempo, Samarcanda permaneceu como o centro da indústria, mas, além de Bagdá, o papel era feito em Damasco,Tiberias, Trípoli, Iêmen, Magrebe e Egito. A cidade de Jativa, na Espanha, foi famosa por seu papel espesso e vidrado.

Depois do surgimento do papel, inúmeros manuscritos se multiplicaram no império muçulmano. Este período próspero para a publicação e venda de livros foi essencial para o desenvolvimento cultural. O papel foi, portanto, de grande importância século IX. A partir de então, o comércio do livro se estabeleceu no oriente. Foram abertas livrarias em volta da mesquita principal. Sábios e escritores costumavam se encontrar nelas e os copistas podiam ser contratados ali. Além das livrarias abertas ao público, podiam ser encontradas salas de leituras, onde as pessoas, pagando uma taxa, podiam consultar os livros.

Os leitores disputavam as obras copiadas pelos calígrafos mais famosos, cujos nomes eram escrupulosamente registrados nas crônicas. As principais livrarias tinham seus copistas oficiais e seus próprios encadernadores. Os escritores de posses tinham uma equipe trabalhando para eles.  A caligrafia foi uma arte muito importante nos países muçulmanos, conforme se depreende dos monumentos e manuscritos que chegaram até nós. O mais famoso da época foi Ibn Muqla.

Bagdá tornou-se uma metrópole intelectual, uma conquista que eclipsou os esforços feitos por suas duas cidades rivais, Kufa e Basra. O trabalho dos tradutores entuasiastas foi só o começo; havia um elo entre os escritores árabes e o pensamento grego, e a assimilação entre eles muitas vezes foi bem sucedida.

Um pouco mais tarde, surgiu uma disputa famosa entre os partidários da cultura conservadora do texto alcorânico e os poetas pré-islâmicos, e seus adversários, os escritores de origem persa, que controlavam a administração do califado. O líder dos escritores, Sahl ibn Harun, era diretor da Casa da Sabedoria, que desempenhou um papel importante para a literatura. As discussões, que por vezes eram bem violentas, eram favoráveis ao desenvolvimento da literatura árabe. Os partidários do "árabe" defendiam ardorosamente sua posição religiosa, que fazia do Alcorão uma revelação na língua árabe. Na verdade, a língua não era a questão, afinal ambos os lados, em suas disputas, expressavam-se em árabe.

A história política deste período é meio apagada. Se apenas a sucessão de acontecimentos fosse levada em consideração para se estabelecer parâmetros, poderíamos ter tido uma falsa idéia da civilização cultural sob os abássidas.

Além do mais, a "iranização" do império influiu na forma de pensar, sentir e escrever. A descoberta da antiguidade sassânida e do pensamento helênico, acrescentou um estímulo renovador. No campo da literatura, havia como que um movimento coordenado de "iranofilia", chamado de shu'ubiya. Consistiu numa reação, nem sempre tranquila, contra a dominação árabe, tanto política quanto cultural. O promotor dessa oposição foi Sahl ibn Harun, diretor da Casa da Sabedoria.

Assim, no século IX, Bagdá era um centro literário fértil que iluminou o caminho das letras arábicas. A poesia continuou a ser cultivada com o mesmo cuidado. Os poetas do período abássida eram merecedores de seus grandes ancestrais dos tempos pré-islâmicos e da corte omíada. Uma lista de poetas geniais desse período, incluiria Bashshar ibn Burd, Muti'ibn Iyas, Saiyid Himyari, Abbas ibn Ahnaf, etc.

Seria um exagero afirmar que esses poetas representavam um certo aspecto da sociedade de Bagdá. No entanto, os contos constantes do Livro dos Sonhos provam que a alta burguesia tinha vencido os escrúpulos morais. A embriaguez era comum, parece, e talvez até emoções mais violentas fossem buscadas. Esses poemas, no entanto, devem ser considerados como um reflexo de parte de uma sociedade que tinha fome de prazer.

A música talvez tenha sido mais importante em Bagdá do que em qualquer outra região do mundo muçulmano. Há grandes nomes no campo da teoria, como al-Farabi, por exemplo, e na composição, como os Mausilis, pai e filho, e Ibrahim ibn Mahdi, o califa efêmero. Durante o governo de muitos califas abássidas, os Mausilis encantaram a corte de Bagdá. Ibrahim foi o favorito dos califas Mahdi, Hadi e Harun al-Rashid. Ele conduzia seus músicos com uma batuta e talvez, tenha sido o primeiro maestro de orquestra. Ibn Khaldoun escreveu que "a beleza dos concertos dados em Bagdá deixou lembranças que perduram até hoje."

O período de ouro abássida possibilitou a ascensão de um grupo de tradutores capazes que tentou, com sucesso, retomar a herança da antiguidade. Homens de letras levaram vantagem nesta contribuição substancial. Entraram numa discussão apaixonada e frutífera , que eram dominadas pela personalidade extraordinária de Jahiz. Talvez ele seja o maior mestre da prosa em toda a literatura arábica. Foi um autor que escreveu sobre os mais diversos assuntos. Além disso, suas convicções mutazilitas fizeram dele um líder literário. Ele estabeleceu os fundamentos de um humanismo que foi quase que exclusivamente árabe e hostil à interferência persa no começo e que viria a tomar uma coloração grega mais tarde. Seu amor pelo conhecimento e sua grande honestidade intelectural eram evidentes em cada página de sua obra. Ele é notável por causa de seu gênio excepcional, suas qualidades de originalidade e sua arte em manejar uma ironia muitas vezes cruel. Por causa de seu talento, a prosa tornou-se mais importante do que a poesia.

Não é possível mencionar todos os escritores que se sobressaíram no século IX, que passaram muitos anos em Bagdá e que se aproveitaram da extraordinária atmosfera efervescente do lugar. É preciso não omitir Yaqubi, o geógrafo, que nos deixou páginas fantásticas sobre a fundção de Bagdá, e Ibn Hauqal, que usou Bagdá como ponto de partida para suas viagens.

Na segunda metade do século X, pintores mesopotâmios foram convidados para pintar afrescos no Egito. Sabe-se que o relevo desses afrescos foram executados de forma surpreendente  no estilo dos pintores de Basra. Basra também mandou vidreiros e oleiros, que se misturaram aos oleiros de Kufa. Textos chineses falam de artistas chineses ensinando pintura em Kufa, na Síria. Um outro texto em árabe fala da qualidade dos azulejos que foram enviados da capital da Mesopotâmia, juntamente com outros materiais, para decorar o mihrab da Grande Mesquita de Qairawan, na Tunísia.

 

Interior da grande mesquita de Qairawan

Na verdade, Bagdá foi um centro de cultura universal, onde podiam ser encontrados as boas maneiras, o refinamento, a educação geral, a confrontação religiosa e o pensamento filosófico, que transformaram essa cidade na mais importante cidade do mundo naquele período.

 

Por  Gaston Wiet

 

 

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