intro.gif (3054 bytes)

Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso

 

or_bar.gif (1182 bytes)

 

RÚSSIA E CHECHÊNIA: Raízes religiosas do Conflito

Falta alguma coisa de essencial na maior parte dos comentários do ocidente sobre a guerra cruel da Rússia contra a república separatista da Chechênia: os próprios chechenos. Enquanto muitos analistas avaliam a perseguição de Yeltsin em sua custosa e impopular guerra no Cáucaso, ou perguntam como a comunidade internacional deveria responder à dizimação de Grozny pelos russos, os chechenos - que se denominam Nokhchi - para os russos, são como pouco mais do que uma fina chapa de metal inexplorada.

Mas, o que mantém um milhão de muçulmanos chechenos em sua pouco provável resistência ao poder russo? Quais são as dimensões religiosas do conflito? De que forma o Islam - e as poderosas e clandestinas fraternidades místicas islâmicas, em particular -  sobreviveu lá, apesar de dois séculos de brutal perseguição czarista, depois soviética e agora russa?

Enquanto a maioria dos 48 milhões de muçulmanos da ex-União Soviética ganhou a independência com a dissolução da URSS em 1991, a Federação Russa ainda tem mais de 7 milhões de muçulmanos diferentes do ponto de vista étnico e linguístico. Dois grupos destes "muçulmanos internos" - os tártaros e os chechenos - são importantes para a Federação Russa por duas razões principais. A primeira é econômica: tanto um como outro possuem importantes reservas petrolíferas, sendo que os tártaros sozinhos produzem  25% da produção russa. A segunda razão é política: de todas as ex-repúblicas russas e repúblicas autônomas, somente os tártaros e os chechenos se recusaram a ratificar o Tratado da Federação Russa, que criou a atual Comunidade dos Estados Independentes de Yeltsin. Moscou rapidamente revidou e o caso tártaro ainda está pendente perante a nova Corte Constitucional russa. Na Chechênia, dois anos de ameaças russas, bravatas e negociações vazias, terminaram na invasão em 1994.

A situação política na Chechênia transformada em guerra não é surpresa para ninguém que conheça a longa e sangrenta história russa no norte do Cáucaso. Os muçulmanos desta região multiétnica têm uma tradição de oposição ao governo de Moscou, que está entrando em seu terceiro século. No centro desta resistência chechena, encontram-se invariavelmente as fraternidades islâmicas místicas resistentes e politicamente ativas do Cáucaso.

A história da expansão russa no Cáucaso - um remoto território montanhoso entre o mar Cáspio e o mar Negro, que é o lar de mais de 30 grupos étnicos diferentes - começou no último século XVIII, com a tentativa de Catarina, a Grande, de anexar a região pela força. Mas os invasores russos inspiraram uma resistência feroz e inesperada por parte da ampla coalizão dos muçulmanos caucasianos, que se uniram em lealdade a um líder espiritual, shaykh Mansur Ushurma - um místico guerreiro muçulmano checheno. Shaykh Mansur declarou a luta um jihad e ele e seus muçulmanos montanheses, em 1785, infligiram uma derrota esmagadora ao exército czarista, no rio Sunzha, e rapidamente formaram, sob seu governos,  o que hoje é conhecido como Daguestão e Chechênia.

Shaykh Mansur chefiou um ramo da ordem sufi Naqshbandi, uma organização islâmica mística que surgiu no século XIV, na Ásia Central. O misticismo islâmico, conhecido como sufismo, se espalhou rapidamente entre muçulmanos e não muçulmanos do Cáucaso e da Ásia Central, em parte por causa das atividades missionárias de estudiosos e místicos sufis itinerantes. Estes shaykhs populares ("amigos de Deus") muitas vezes alcançavam grande reputação  e quando morriam seus túmulos quase sempre se transformavam em santuários (mazars) e locais de peregrinação. Recentemente, nos anos 70, as autoridades soviéticas atestaram a atração permanente desses santuários, listando mais de 70 mazars em funcionamento no Daguestão e mais de 30 na Chechênia. Líderes religiosos muçulmanos mais tradicionais muitas vezes atacaram o "culto sufi dos santos"  como uma prática não islâmica, mas desde cedo no Cáucaso, o sufismo ajudou a atrair convertidos para o Islam nas camadas populares e foi uma fonte poderosa de orientação espiritual e identidade social.

Normalmente estes shaykhs dirigiam uma organização pequena e exclusiva de discípulos (murids) unidos por juramentos de obediência absoluta. Os discípulos mais velhos tinham a permissão de iniciar novos devotos na fraternidade e esses eram muitas vezes despachados para divulgar a ordem nos vilarejos das montanhas. Frequentemente, murids carismáticos e ambiciosos formavam suas próprias organizações dentro de uma ordem. Certas ordens e subordens sufis tornaram-se intimamente ligadas a grupos étnicos específicos e com as famílias mais conhecidas.

Zikr (recordação de Deus) é a prática ritual central da maior parte das ordens sufis do Cáucaso. Esta cerimônia mística, projetada para levar seus participantes à união arrebatada com Deus, envolve a repetição de uma oração especial ou de vários nomes divinos de Deus. Os naqshbandis praticam uma forma silenciosa de zikr que é fechada aos estranhos, mas outras ordens algumas vezes permitem reuniões de zirk abertas e cantadas.

É impossível estabelecer números confiáveis da quantidade de seus membros, mas em 1975, uma pesquisa soviética realizada na Chechênia estimava que metade da população muçulmana da região pertencia a ordens sufis, um estonteante número de mais de 300.000 murids. Os naqshbandis, que mais tarde se juntaram à irmandade sufi Qadiri, dominaram a vida espiritual muçulmana do norte do Cáucaso, desde o século XVIII até os dias atuais. Naturalmente discretos e disciplinados, contando com um grande apoio social, essas ordens se mostraram adversárias fantásticas de quem quer que tentasse governar o Cáucaso. Os discípulos de Shaykh Mansur continuaram sua resistência contra os russos, mesmo depois de sua morte na prisão, em 1793. Em 1824, recomeçou uma grande revolta armada contra a ocupação russa do Daguestão e da Chechênia, quando vários líderes sufis naqshbandis, chamados de Imames, começaram uma guerra de guerrilha que durou por mais de 30 anos. O mais famoso desses guerreiros sufis, o shaykh naqshbandi Imam Shamil, chegou a criar um estado islâmico de curta duração na Chechênia e no Daguestão, antes de sua rendição em 1859. Com Shamil na prisão, os russos partiram para esmagar os "muridistas" restantes e pacificar a região. Muitos seguidores de Shamil foram enforcados ou deportados, enquanto que seus representantes mais velhos escaparam para Meca, Medina ou Turquia. Mas, com a supressão dos naqshbandis, uma nova ordem, Qadiri, entrou na luta.

A ordem Qadiri, com suas origens na Bagdá do século XII, apareceu pela primeira vez no Cáucaso em 1861, chefiada por um pastor do Daguestão de nome Kunta Haji Kishiev. Baseado na Chechênia, Kunta Haji ensinou uma prática mística que, diferente dos naqshbandis, permitia o zikr cantado, a música arrebatada e a dança. No início, ele aconselhava a paz com os russos. Sua popularidade cresceu mas logo seu partido, aumentado com os muitos soldados murids do antigo exército de Shamil, começou a preocupar os russos. Kunta foi preso e exilado em 1864. Naquele mesmo ano em Shali, na Chechênia, tropas russas atiraram em mais de 4.000 murids qadiris, inicando uma nova onda de violência. A irmandade, cujos líderes remanescentes diziam descender de Kunta Haji, tornaram-se inimigos implacáveis dos russos e fincaram raízes profundas no interior da Chechênia. Junto com os naqshbandis renovados, os qadiris se levantaram contra os Romanov em 1865, 1877, 1879 e 1890 e atormentaram o governo czarista no Cáucaso aderindo à Revolução Bolchevique.

Os anos revolucionários foram especialmente sangrentos no Daguestão e na Chechênia. Os qadiris e um movimento naqshbandi liderado pelo shaykh Uzun Haji, lutaram por 8 anos contra os exércitos branco e vermelho para criar um "Emirado Norte Caucasiano". O intransigente Uzun Haji, cujo túmulo permanece um local de peregrinação para os muçulmanos chechenos, via muito pouca diferença entre os russos czaristas e os comunistas ateus. "Estou tecendo uma corda", ele era citado por seus inimigos, "para enforcar engenheiros, estudantes e todos aqueles que escrevam da esquerda para a direita."

Seu levante no Daguestão foi suprimido em 1925, mas os soviéticos, que chamavam os sufis de "bandidos", "criminosos" e "contra-revolucionários", continuaram a prender, executar e deportar os "zikristas" até a deflagração da II Guerra Mundial. As irmandades enfrentaram a situação como sempre faziam: os shaykhs desapareceram nas montanhas, os murids passaram a promover as reuniões de zikr em suas casas e as ordens garantiram seu segredo por intermédio de um duplo laço de iniciação espiritual e uma lealdade estreita ao clã.   Durante a II Guerra Mundial, quando ocorreram distúrbios na Chechênia em 1940 e de novo em 1943, Stalin respondeu com uma brutalidade incrível que tocou as raias do genocídio. Acusando-os de uma pouco provável colaboração com os nazistas, em 1944 ele mandou para os campos especiais na Ásia Central 6 nacionalidades caucasianas, inclusive toda a população chechena e ingush. Por alto, mais de 1 milhão de muçulmanos caucasianos foram deportados, com grandes perdas de vida. Estima-se que perto de metade da população chechena-ingush, mais de 250.000 pessoas, desapareceu após a liquidação da república em fevereiro de 1944.

Os chechenos e outros grupos passaram mais de uma década em campos de trabalho isolados no Casaquistão. Mas, de todo modo, os reassentamentos forçados não conseguiram quebrar  a irmandade sufi nem o espírito nacional checheno. Ao descrever a "psicologia da submissão" que prevaleceu nos campos soviéticos, o autor russo, Alexander Solzhenistsyn, observou que apenas um povo se recusou a ser abatido pela provação: "a nação como um todo - os chechenos". E, em estudos sociológicas posteriores, acadêmicos soviéticos eufemisticamente observaram que "as condições especiais de pós-guerra" na verdade tinham fortalecido as crenças religiosas nos povos caucasianos exilados.

Em 1957, quando os chechenos e outros grupos caucasianos exilados foram declarados "reabilitados" e voltaram para suas repúblicas, eles descobriram que seu território tinha sido "russificado". Milhares de fazendeiros russos, que tinham sido trazidos para trabalhar na terra durante sua ausência, tornaram-se residentes permanentes e agora compreendiam 1/4 da população da região.

Também descobriram uma terra onde o Islam tinha sido banido. As autoridades soviéticas tinham chegado a quase total supressão do Islam na região, fechando mais de 800 mesquitas e 400 faculdades religiosas. Mazars foram demolidas, convertidas em museus do estado ou, então, tornadas inacessíves. Somente após quase 30 anos, em 1978, as autoridades soviéticas do Cáucaso permitiram que 40 mesquitas fossem reabertas, com uma equipe de menos de 300 ulemas registrados.

Estas medidas contra o Islam "institucional" tiveram pouco impacto  nas irmandades sufis, que nunca tinham contado com as mesquitas ou madrassas como seus centros de atividades. Na verdade, as ordens, principalmente a naqshbandi, são conhecidas pela capacidade de organização, com suas aulas de árabe clandestinas e escolas que ensinam o Alcorão. E, por toda a década de 70, as ordens alcançaram de novo a popularidade na Chechênia, através de uma nova irmandade chechena sufi, uma ordem que se formou no exílio na Ásia Central.

Esta nova irmandade - chamada de Vis Haji por causa de seu fundador, o checheno sufi Uways "Vis" Haji Zagiev - é um produto do ramo Kunta Haji, da ordem Qadiri. Identificada pela primeira vez nos campos em 1953, a Vis Haji combina adesão escrupulosa ao Islam "conservador" com uma incansável retórica anti-russa e anti-soviética. No entanto, os murids Vis Haji têm a permissão de trabalhar nas indústrias estatais, mesmo aquelas que produzem cigarro e álcool. Descrita por alguns observadores como "violentamente xenófoba", a ordem explora a moderna tecnologia para divulgar a mensagem da retidão espiritual e do ativismo político. Relatórios soviéticos indicam que, em algumas regiões, a Vis Haji secretamente convoca suas próprias cortes islâmicas e recolhe ilegalmente várias taxas religiosas.

O zikr da Vis Haji, ao empregar violinos e, algumas vezes, tambores, justifica, para alguns, a popularidade da ordem. Atraentes até para os não membros, as apresentações do zikr proporcionam a base para as reuniões   e exibições públicas durantes os feriados religiosos em muitos vilarejos chechenos. Em um outra prática singular, as mulheres são bem vindas no zikr de Vis Haji e existem relatos de mulheres shaykhs liderando seus próprios círculos de adeptas. De fundamental importância na preservação da identidade muçulmana chechena durante o exílio, a Vis Haji é reconhecida hoje como a mais ativa e inovadora ordem no Cáucaso.

É pouco provável que Boris Yeltsin e a Federação Russa possam ser completamente vitoriosos na Chechênia, onde gerações de sofrimentos, governos repressivos e até genocídios não conseguiram. É errado estabelecer o apoio do Presidente Dzhokhar Dudayev contra os russos como estando em consonância com as irmandades sufis chechenas: sua agenda não é a delas e sua fidelidade ao Islam é considerada política e superficial.

Mas, desafiadas por um exército russo invasor, as irmandades já trouxeram a luta para o seu lado. No início deste ano, os guerrilheiros chechenos se retiraram para as montanhas e abandonaram Grozny e o fim da guerra chechena tornou-se tão impreciso quanto as próprias ordens sufis. Nesta batalha cansativa de vontades entre Moscou e os muçulmanos chechenos, Boris Yeltsin e a Federação Russa estão entre os oponentes mais fracos.

=====

Publicado originalmente em Religious Studies News, September 1995, Vol. 10, No. 3., p. 10.

David Damrel, autor da matéria,  é Fellow da St. Cross College, Oxford, e um Associate Faculty Member no Departamento de Estudos Religiosos da Universidade do Estado de Arizona.

 

 


home.gif (396 bytes)


1