Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso
A QUESTÃO DO CURDISTÃO
Descendentes de tribos de pastores, os curdos vivem há milhares
de anos nas montanhas da Ásia central, absorvendo influências, mas preservando o idioma
e os costumes. Ao longo se sua história, os curdos mantiveram traços culturais
muito peculiares, em que sobressaem a tradição guerreira e a forma societária de
democracia tribal, baseada na propriedade coletiva das terras. O relevo montanhoso da
região contribuiu para a preservação de suas particularidades nacionais. Com a desagregação do império otomano, França e Inglaterra
dividiram o Curdistão otomano entre a Turquia, Síria e Iraque.
ANTECEDENTES
A nação curda tem uma extensão total de aproximadamente 600.000 km2, e abrange uma
vasta região situada na confluência das fronteiras do Iraque, Irã e Turquia, além de
pequenas faixas na Síria e na Armênia. A maior parte do Curdistão está inserida no
território da Turquia, seguindo-se o Iraque e o Irã. Sua população está ao redor de
36 milhões de habitantes. Na Turquia eles são 15 milhões. No Iraque representam mais de
20% da população. Devido às perseguições, existem milhões de curdos emigrados e
refugiados na Europa Ocidental, sobretudo na Alemanha.
Fronteiras internacionais
Áreas onde a maioria da população é curda
Achados arqueológicos documentam que alguns dos primeiros passos da humanidade em direção ao desenvolvimento da agricultura, domesticação de animais, de tecnologias domésticas, metalurgia e urbanização aconteceram na região do Curdistão e datam de até 12.000 anos atrás.
Ocupando uma estratégica posição nas rotas
comerciais entre o oriente e o ocidente, o território
curdo foi muito disputado pelos antigos impérios. Todos os grandes reinos curdos do
ocidente foram sendo absorvidos aos poucos pelos romanos, mas no oriente eles sobreviveram
até o século III, quando foram ocupados pelos persas sassânidas. A última grande
dinastia curda caiu em 380. Os kotyar (pequenos principados curdos nas
montanhas), no entanto, conservaram-se autônomos até o século VII, quando
foram islamizados pelos árabes muçulmanos.
Nos séculos XII e XIII, os turcos nômades chegaram à região e a maior parte dos estados curdos independentes sucumbiu aos diversos reinos e impérios turcos. Os principados curdos, no entanto, sobreviveram e continuaram com uma existência autônoma até o século XVII.
Reinos independentes e principados autônomos - séc. XIX
Áreas atuais de maioria curda
Entre os séculos XVI e XVIII, grandes porções do Curdistão foram sendo sistematicamente devastadas e os curdos foram sendo deportados para os mais longínquos recantos do império otomano. Os massacres e destruição contribuíram para que o povo curdo se unisse em torno da luta pela expulsão dos estrangeiros de suas terras, despertando um sentimento nacionalista que exigia um estado curdo baseado na língua e cultura curdas.
Ainda uma última vez, surgiu um grande reino curdo, o zand, em 1750, de curta duração. Em 1867, os últimos principados curdos autônomos foram sistematicamente erradicados pelos otomanos e persas que governaram o Curdistão. A situação se deteriorou mais ainda depois da I Guerra Mundial e da dissolução do império otomano.
O Tratado de Sèvres, de 1921, previa um estado curdo independente que abrangia grandes porções do antigo Curdistão otomano. No entanto, França e Inglaterra dividiram o Curdistão otomano entre Síria, Turquia e Iraque. Os anos 20 viram o surgimento de uma Província Curda Autônoma (o Curdistão vermelho) no Azerbaijão soviético, mas que foi dissolvida em 1929.
É interessante observar que as potências
vencedoras da Primeira Guerra haviam afirmado que, com o
desmembramento do Império Otomano, estavam criadas as condições para o surgimento de um
estado curdo. Assim estipulavam os artigos 62, 63 e 64 do Tratado de Sèvres. A
oposição da Turquia, a descoberta de ricas jazidas de petróleo na região e
o temor da influência da Revolução Russa, motivaram um novo arranjo geopolítico. Em
1923, o Tratado de Lausanne descartava por completo a criação de um estado curdo,
desencadeando uma feroz repressão na Turquia, onde até o idioma curdo foi proibido.
Durante a II Guerra Mundial, os curdos submetidos pelo Irã
recuperaram terreno e força militar. Em fins de 1945, haviam libertado amplos
territórios. Quando o Exército Vermelho penetrou no norte do Irã, a resistência curda
declarou , em janeiro de 1946, a República de Mahabad com um modelo influenciado pelo
socialismo e apoiado pelos soviéticos.
Todavia, a república durou apenas 11 meses. As investidas dos Estados Unidos na região
colocaram a
Turquia e o Irã na sua órbita anti-soviética. Pressionada, a ex-URSS decidiu abandonar
o apoio à República de Mahabad. Seguiu-se a guerra fria com consequências muito
prejudiciais aos curdos, de vez que ocupavam uma zona estratégica de vital importância
no xadrez geopolítico mundial.
No final dos anos 60, reaparece a guerrilha curda no Irã e
no Iraque e em 1978 é fundado o Partido dos
Trabalhadores Curdos (PKK) na Turquia, que logo se transformou na maior organização
política e militar curda.
Durante a guerra Irã x Iraque (1980-1988), os curdos foram duramente castigados pelo fato
de se encontrarem "no meio da guerra". A Turquia, aproveitando a situação,
desencadeou, com o apoio da OTAN, violentas campanhas repressivas. Aldeias inteiras,
habitadas por civis, foram arrasadas. No Iraque, após o término da guerra, a repressão
foi de igual violência. Diante de um surpreendente levante curdo, o regime iraquiano
promoveu novos massacres. Dezenas de milhares de pessoas foram deportadas de suas regiões
de origem e mais de mil povoados aniquilados. Milhares de curdos foram mortos pelo uso de
armas químicas lançadas pelas tropas de Saddam Hussein. Somente na aldeia de
Halabja, morreram quase 5 mil pessoas em consequência do efeito destas terríveis.
Mais uma vez, o ocidente ficaria indiferente ao drama dos curdos.
Após a derrota do Iraque na Guerra do Golfo, foi
estabelecida uma zona de exclusão sobre o território
iraquiano onde está proibida qualquer atividade militar. Esta zona está dividida em duas
faixas: uma ao sul, habitada por muçulmanos xiitas contrários ao regime de Bagdá, e
outra ao norte, onde vivem os curdos.
No final de 1991, os curdos tornaram-se independentes do Iraque. Em 1995, no entanto, o governo curdo em Arbil, capital do Curdistão, esteve à beira do suicídio político, devido ao surgimento de desavenças entre os vários grupos. Desde 1987, os curdos da Turquia, que constituem a maioria de todos os curdos, declararam uma guerra de libertação nacional contra o governo de Ancara, para resgatar a identidade curda e sua rica cultura.
No Cáucaso, a república da Armênia, durante
os anos 92-94, eliminou toda a comunidade curda do antigo Curdistão Vermelho e anexou o
território curdo que forma as terras entre o enclave armênio de Nagorno-Karabach e a
própria Armênia. Esse território, habitado por uma maioria de armênios (cristãos
ortodoxos), fica dentro do Azerbaijão (muçulmano). O Karabach foi cedido por Stálin ao Azerbaijão nos anos 30. Com a
abertura promovida por Gorbatchov, a Armênia passou a reivindicar a posse do território.
O fortalecimento do sentimento islâmico no Azerbaijão tornou-se incompatível com um
inevitável sentimento de perda que seria provocado pela cessão do Karabach. A questão
permanece sem solução.
RIVALIDADES CURDAS
Em meados de 1996, eclodiu uma luta fratricida entre os curdos
do Iraque, opondo a União Patriótica do Curdistão (UPK), liderado pelo antigo chefe
guerrilheiro Jalal Talabani, e o Partido Democrático do Curdistão (PDK), dirigido por
Massud Barzani. A rivalidade destes dois movimentos é antiga, tendo sido minimizada em
1992, após a Guerra do Golfo, quando chegou a haver um começo de fusão das alas
militares. Contudo, no ano seguinte, as divergências mais uma vez se acirraram, com
choques armados e o surgimento de uma terceira força, a Liga Islâmica do
Curdistão (LIK), de tendência fundamentalista.
O conflito entre as duas principais organizações curdas do Iraque agravou-se com a
intervenção do exército iraquiano a favor do Partido Democrático do Curdistão (PDK),
que acusava a União Patriótica de estar recebendo apoio do Irã. A UPK perdeu o controle
de várias cidades, inclusive de Arbil, a capital.
A entrada do Iraque no conflito suscitou a intervenção dos EUA, uma vez que ficara
proibida qualquer movimentação militar iraquiana na Zona de Exclusão imposta pelos
aliados após a Guerra do Golfo.
O cenário parecia indicar que os EUA estariam socorrendo a outra facção curda, no caso
a UPK. Na
realidade, nem o Iraque nem muito menos os EUA estão interessados em defender os curdos
sejam lá de que partidos forem. Ao Iraque interessa apoiar uma das facções com o
propósito de dividir a resistência e impedir o avanço da luta pela autodeterminação.
De quebra, atiçando os EUA, Saddam Hussein recria artificialmente a coesão
nacional contra o agressor "inimigo do Islã", reforçando sua base de apoio
interna. Para os EUA, tudo não passou de mais um exercício de animação para a
indústria de armamentos, pois Saddam Hussein, apesar de tachado como inimigo, representa
uma zona de contenção à influência iraniana na região e uma barreira contra o avanço
da luta dos curdos.
Após semanas de combates, a UPK conseguiu recapturar algumas cidades, enquanto o PDK
continuava insistindo que a ajuda do Iraque foi circunstancial, não implicando
compromissos políticos com Bagdá. Os enfrentamentos entre os curdos enfraquece a
resistência como um todo e reedita acontecimentos passados, quando as rivalidades entre
os grupos armados eram incentivadas pelos diferentes governos da região.