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ATUALIDADES

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O ORTODOXO NÃO ORTODOXO

Este trabalho de Alex Klaushofer para o semanário inglês, Observer, refere-se ao Neturei Karta, um grupo ortodoxo veementemente anti-sionista. Levados por motivos teológicos e políticos também, os membros do grupo têm se posicionado a favor dos direitos dos palestinos e do fim da ocupação israelense, Na verdade, Klaushofer cita um rabino como tendo dito que de modo ideal, os judeus "israelenses devem renunciar à reivindicação de terra das fronteiras de 1948" (uma posição, observa Klaushofer, mais radical do que qualquer uma que a OLP tenha assumido ao longo do tempo). O grupo redigiu uma crítica violenta: um de seus membros em Londres, está sob proteção policial por causa das ameaças de morte recebidas.

Klaushofer discute a importância da visibilidade crescente do Neturei Karta na comunidade árabe da Inglaterra. Algumas das interações são realmente inspiradoras. Um representante do grupo descreve sua felicidade no encontro com árabes e de ter sido recebido com sentimentos de solidariedade ao invés de hostilidade. Um outro membro disse: "Alguém chegou a mim e disse que durante 39 anos odiou os judeus. E agora, quando ele nos viu, sentiu que tinha que se aproximar e apertar as mãos. Havia lágrimas em seus olhos." Considerando a afirmação do Neturei Karta de ser a voz autêntica do judaísmo, é irônico que este documento sirva para enfatizar a suprema importância de que uma ampla variedade de vozes seja ouvida a respeito desta questão a partir da comunidade judaica diversa.

Eles seguem rigorosamente os princípios da Torá e também queimam bandeiras israelenses. Alex Klaushofer se encontrou com os membros do Neturei Karta - os mais ousados críticos do sionismo no mundo judaico - no norte de Londres

 

O ORTODOXO NÃO ORTODOXO

Por Alex Klaushofer

Estamos num sábado ensolarado de maio, e Trafalgar Square está repleta. Milhares de pessoas vieram do Hyde Park para mostrar seu apoio aos palestinos. Durante meses, a população palestina da Cisjordânia e Gaza viveu uma existência humilhante, confinada em suas casas por bloqueios e toques de recolher impostos pelo exército israelense. Dez dias antes, um homem-bomba palestino havia matado 15 israelenses num clube de sinuca perto de Tel Aviv. Mas, apesar dos sinais de que o conflito no Oriente Médito esteja pior do que nunca, os manifestantes estão com um humor festivo, acenando os cartazes oficiais que pedem o fim da ocupação israelense. O muro em frente à National Gallery brilha com o vermelho, verde e negro de uma imensa bandeira palestina. Do pedestal da Coluna Nelson, um orador após outro anima a multidão. Estão ali George Galloway e Jeremy Corbyn, o delegado palestino Afif Safieh e Michel Massih e Iqbal Sacranie, do Conselho Muçulmano da Grã-Bretanha. Eles pedem que Sharon, Bush e Blair apoiem a causa palestina e recomendam aos manifestantes que boicotem os produtos israelenses. Ao lado deles, no palco, estão sentados 4 judeus ortodoxos, com seus longos casacos pretos, grandes chapéus e os cachos de cabelo característicos. Eles dão um toque surreal ao ato.

O grupo é parte do Neturei Karta, uma seita anti-sionista da comunidade judaica ortodoxa que se opõe apaixonadamente ao estado de Israel e ao tratamento que seu governo dispensa à população palestina. Uma vez que eles estão proibidos de usar transportes aos sábados, alguns de seus membros vieram caminhando de Stamford Hill por cerca de duas horas, com suas roupas de sábado, xales de oração e chapéus de aba. Apesar da posição que se encontram e com a visão total dos milhares abaixo, eles parecem perfeitamente à vontade, segurando uma bandeira palestina e cartazes com o slogan "Fim à ocupação". Eles não querem falar e por isso um dos organizadores lê uma declaração em nome deles, condenando, em termos vigorosos, "as atrocidades cometidas pelo regime sionista", e lamentando a "condição do povo palestino".

Dois adolescentes da Organização Jovens Muçulmanos do Reino Unido olham fixamente para aquele pequeno grupo, inclinando a cabeça e rindo da explicação dada por um adulto que estava perto. Quando os discursos terminaram, o grupo de judeus foi tomado de assalto pelos jovens muçulmanos que queriam saber mais a respeito deles. Nem toda conversa é política. Um jovem asiático diz que ele veio de Yorkshire. "Sim, eu sei", responde um do Neturei Karta, com um interesse polido.

É o maior acontecimento que um dos quatro, Alter Hochhauser, de 35 anos, já participou. Ele se abre num sorriso quando se lembra depois, num inglês ligeiramente hesitante, do que esta declaração pública significou para ele. "Eu estava me sentindo muito bem. Sempre achei que o povo árabe não tinha nada contra os judeus e sim contra o sionismo. A propaganda sionista é tão forte, de que os árabes matariam o povo judeu, mas sei que não é verdade. Agora eu vi com meus próprios olhos, como eles ficaram felizes conosco." Seu amigo, Elhanan Beck, também ficou animado com o impacto da presença deles. "Eu acho que muitas pessoas mudaram de opinião sobre o povo judeu quando nos viram", diz ele.

O revelar-se é um grande passo para os membros de uma comunidade ídiche,profundamente religiosa e autossuficente, que normalmente tem pouco contato com o mundo exterior. Mas, com o Oriente Médio em ponto de ebulição, o Neturei Karta, cuja posição é bastante conhecida dentro da comunidade ortodoxa, sente uma nova obrigação, a de levar seus conceitos para um público maior. O protesto aberto traz riscos, uma vez que muitos judeus encaram a condenação que fazem a Israel como uma traição. Um membro do grupo, Abraham Grolman, foi atacado quando participava de uma contra-demonstração no maior evento pró-Israel, em Trafalgar Square, em maio. Um outro, que não pode ter o nome divulgado, está recebendo proteção policial após uma enxurrada de ameaças de morte. Beck, de 36 anos, afirma que o medo das conseqüências não o impedirão de seguir os mandamentos de sua educação religiosa. Mas ele acrescenta, com uma certeza menor: "No momento, ainda não é tão sério. Não posso dizer o que farei, mas espero que quando ficar sério, farei o preciso fazer."

O rabino Israel Domb me introduz na sala de jantar de sua casa avarandada, em Stamford Hill. Com uma mesa coberta de renda que ocupa a sala e um aparador de vidro, quase que poderíamos estar numa sala da Europa oriental dos anos 50. Agora, com 86 anos, Domb arrasta os chinelos que, com seu longo casaco de cetim preto, compõem sua roupa de andar em casa. Mas ele exala  duas qualidades: benevolência e autocontrole, que marcam aqueles que acreditam que chegaram a um ponto de certeza espiritual e existencial.

Estranhamente, todos os procedimentos são filmados por um rapaz que nenhum de nós estava esperando. Querendo pegar o discurso de um dos mais velhos e consciente da necessidade crescente de material publicitário, o Neturei Karta, em Nova York, autorizou a exibição da maior parte de minhas entrevistas.

A longa existência de Domb é testemunha da experiência do povo judeu no século XX. Ele veio da Polônia para a Inglaterra, em 1939, e perdeu sua mãe e irmãs no Holocausto. Mas também foi uma vida vivida contra a maré: nos anos 50, ele visitou o recém-criado estado de Israel, e começou a falar e a escrever contra o sionismo, o que o tornou impopular na comunidade ortodoxa. A publicação do "A Transformação", a exposição definitiva da visão de mundo do Neturei Karta, confirmou a posição de um dos principais líderes espirituais do movimento. Confinado num couro vermelho escuro e do comprimento de uma breve novela, seu registro é difícil de ser colocado, com sua combinação de afirmação teológica e comentário histórico-político, escrito num estilo de muitas décadas atrás.

Ele insiste em que o viés politizado de sua vida vem de sua educação numa família profundamente religiosa. Ele me conta como, quando os nazistas chegaram,um professor polonês ofereceu-se para esconder suas duas irmãs louras. "Minha mãe disse, 'Agradeço sua gentileza, mas prefiro que eles morram como judeus do que serem educados como não judeus'. Venho de uma família de convicções muito fortes. O Neturei Karta não tem nada de novo."

Domb afirma que, enquanto a maior parte dos judeus modernos largaram o verdadeiro judaísmo, o Neturei Karta - que significa 'guardiães da cidade santa' em aramaico - é a minoria encarregada de manter a fé. O movimento foi criado em Jerusalém, nos anos 30. Seus adeptos, vivendo na Terra Santa desde o século XVIII, sempre se opuseram a um estado judeu e se preocupavam com a pressão crescente para a criação de uma pátria judaica. Domb insiste em que seus princípios recuam às origens da identidade judaica.

"O Neturei Karta não é uma idéia, uma nova tendência, ou um partido com um programa", me diz ele. "É a autêntica natureza judaica do povo judeu". Em seu coração teológico está a crença de que os judeus foram exilados por seus pecados e estão destinados a sofrer um destino que só será redimido quando a intervenção divina, com a chegada do Messias, mudar a ordem mundial. Neste meio tempo, os judeus devem permanecer sem estado, vivendo sob o governo de qualquer país que os receba. O sionismo, com o desejo de uma estado soberano, representa a rejeição blasfêmica à vontade de Deus. "Uma solução terrena para o povo judeu não é possível, porque nós não estamos destinados para a felicidade terrena. O povo judeu deve perceber e ver que o estado sionista é uma grande calamidade", diz Domb.

Na conversa, Domb frequentemente distingue o nível religioso - o messianismo que proíbe a intervenção política dos judeus - do que ele chama de perspectiva "mundana" ou terrena. Quando ele fala sobre este segundo nível, suas observações são afiadas. "Quando os sionistas falam sobre paz, eles querem paz, porém o significado disto é uma ocupação pacífica", diz ele. Mas ele também tem o humor negro do europeu central, rindo melancolicamente para si mesmo, enquanto invoca os piores excessos do comportamento humano: "Eles foram convidados a irem para a Cisjordânia? Ou Ramallah, ou Jenin? Eles foram convidados a arrancar de suas casas cerca de 600.000 árabes?

Ironicamente, a solução política que Domb defende é mais radical do que a da OLP que, em 1988, reconheceu o direito de existência de Israel. Ele não alimenta esperanças de que isto possa acontecer, mas acha que os israelenses devem renunciar às reivindicações de terra das fronteiras de 1948 e reparar os palestinos. Com o estado de Israel desmontado, os judeus poderiam permanecer na Terra Santa, mas vivendo sob um governo palestino. Porém, ultimamente, acentua ele, a objeção do Neturei Karta a Israel baseia-se mais em termos teológicos do que políticos. "A existência do estado judeu é diametralmente oposta ao judaísmo", diz ele. "Mas, porque aconteceu, e os árabes sofreram, é nosso dever dizer a eles: 'É moralmente errado, é ilegal do ponto de vista mundial e nós não participamos disto. Portanto, não acusem todo o povo judeu pelo sofrimento que vocês passaram.'"

O reconhecimento desta injustiça, diz ele, impõe uma obrigação ao Neturei Karta que é a de tornar claro ao povo palestino nossa posição. Falando vagarosamente e com ênfase ele declara: "É estimulante que os jovens venham e falem contra o sionismo. mas eles também devem evitar falar absurdos e exageros."

Não surpreende que o ramo do Neturei Karta de protesto manifesto encontre pouca aceitação por parte dos líderes da comunidade judaica da Inglaterra. O rabino chefe, Jonathan Sacks, falando na manifstação do dia da independência de Israel, promovida pela Federação Sionista em Wembley, onde um dos Neturei Karta baixou a bandeira israelense, condenou o ato como "imperdoável". Neville Nagler, diretor geral do Conselho de Representantes Judeus Ingleses, acusa a entidade de ser uma "organização marginal, fora dos muros". Ele alega que a "hostilidade feroz contra Israel, a vontade de profanar o sabbath, desmascaradas nas demonstrações" os isolam até da comunidade ortodoxa onde vivem. O rabino Tony Bayfield, chefe das sinagogas inglesas, diz que o sentimento anti-sionista do Neturei é insustentável hoje em dia: "A batalha intelectual e teológica perdeu a melhor parte de um século atrás. Já não é mais importante ou significativo. Para a grande maioria dos judeus, a existência do estado de Israel é inegociável". É uma atitude paradoxal - rejeitar o grupo como irrelevante enquanto manifesta hostilidade palpável - que talvez seja a medida de como o Neturei Karta toca na questão central do conflito do Oriente Médio: o direito de Israel de existir.

O Neturei Karta, de Nova York, tem uma longa experiência em lidar com o protesto público e a controvérsia. Baseado na área de Monsey da cidade, a maior, mais grupos foram organizando protestos anti-sionistas, desde 1948, alguns dos quais, dizem eles, atraiu mais de 30.000 judeus ortodoxos. Seu líder, Moshe Beck, visitando seus filhos em Londres e falando por intermédio de um intérprete ídishe, me conta que a tensão aumentada do ano passado causou a saída de alguns adeptos e provocou ameaças contra ele e outros ativistas. Porém, muitos permaneceram firmes. "Aqueles que fazem isto, estão preparados para quaisquer conseqüências", diz ele, acrescentando: "Todas as nossas ações nada mais são do que a proclamação da verdade - não é uma idéia política."

Beck, um homem de 68 anos, de aparência frágil, que não faz um contato visual uma única vez durante nosso encontro de 1 hora de duração, não parece ter a característica para estar à frente de tão grande conflito. Nascido na Hungria, ele emigrou para Israel logo após a sua criação. O que ele viu lá - o surgimento de uma sociedade secularr moderna, combinada com o duro tratamento dispensado pelo governo aos palestinos - o horrorizou. Então, ele encontrou com o mais respeitado líder do Neturei Karta, Amram Blau, e tornou-se um ativista do movimento sediado em Jerusalém. Mas, em 1973, sentindo que não era mais correto viver em Israel, ele e sua família se mudaram para Nova York.

Em Israel, a posição do Neturei Karta era muito diferente. Parte integrante da comunidade ultra-ortodoxa do quarteirão Mea Shearim, em Jerusalém, o grupo nega  legitimidade ao governo, recusando-se a pagar impostos e evitando o recrutamento militar das Forças de Defesa Israelenses. Nos anos 60 e 70, eles promoveram uma campanha violenta pela observância do Sabbath, e finalmente convenceram as autoridades a fechar algumas das ruas de Jerusalém no feriado.

Seu líder e ministro do Exterior, rabino Moshe Hirsh, que se considera um judeu palestino, se habilita numa campanha, nos anos 80, para ser indicado como representante do Neturei Karta na OLP. Em 1994, Arafat aprova sua posição como Ministro para as Questões Judaicas da OLP. Mas, na condição de um orador não árabe e incapaz de lidar diretamente com os representantes israelenses por causa da recusa do Neturei Karta em reconhecer o governo israelense, Hirsh teve um papel mais de conselheiro do que de ministro no governo palestino. Ele usou sua posição como uma plataforma para campanha, aconselhando Arafat, em 2000, a declarar unilateralmente um estado palestino independente.

Mas, no geral, as atividades do Neturei Karta são razoavelmente de baixa intensidade. Hirsh, que afirma ter 10.000 adeptos em Jerusalém, diz que o grupo está tão bem estabelecido que não há necessidade de tomar as ruas. "Não reconhecemos o governo; todo mundo sabe disto. Não vemos necessidade", diz ele.

Mas o professor Menachem Friedman, um especialista da Universidade ultra-ortodoxa de Bar Ilan, perto de Tel Aviv, diz que as tensões recentes dentro do movimento ortodoxo anti-sionista, a respeito de se fazer aliança política com os palestinos, reduziram o número de membros do Neturei Karta. "O Neturei Karta é um grupo muito pequeno em Israel", diz ele. "Por causa do terror palestino, está muito difícil encontrar apoio. Mesmo assim, eles são muito tolerados e isto é parte do mundo excêntrico de Jerusalém agora."

A cultura secular do ativismo inglês acha que até os adeptos dos palestinos aqui são cautelosos em relação à aliança improvável. "Não podemos concordar com muita coisa do que dizem porque se baseiam em crenças religiosas, mas é muito útil mostrar que existe um apoio mais amplo para o povo palestino", diz Carole Regan, presidente da Campanha de Solidariedade à Palestina, que organizou a manifestação de maio, em Trafalgar Square.

Porém, as centenas de e-mails enviados recentemente ao Neturei Karta de todas as partes do mundo sugerem que sua posição ecoa para uma audiência mais ampla e menos alinhada. "Que Allah abençoe vocês! Eu me sentei e gritei de felicidade," escreve um correspondente depois de descobri-los. "Obrigado, Ó Povo do Livro", diz um outro. "Vocês são de verdade?", pergunta um terceiro.

É duro compatibilizar  a hostilidade que o Neturei Karta provoca na corrente dominante da comunidade judaica inglesa com o povo gentil que tive diante de mim face a face. Alguns assumem uma expressão de inocência, coisa rara nos dias atuais, que fica difícil de colocar. É um sinal de como a comunidade judaica ortodoxa, da qual o Neturei Karta faz parte, trabalhou bem para que a organização tivesse uma vida a parte. Uma vida tomada de seus ancestrais poloneses do século XVIII, que se centra na observância religiosa. Uma malha de crenças e práticas governa cada aspecto da vida dos 20.000 que compõem a forte comunidade de Stanford Hill, construindo uma identidade forte e uma sociedade coesa. Eles temem os perigos do anti-semitismo e a influência contagiosa da modernidade, mas é uma comunidade consciente de sua própria fragilidade e preserva sua privacidade violentamente. Além dos negócios realizados nas vizinhanças e com associados, não há qualquer outro contato com o mundo externo.

Existem poucas mulheres nas ruas de Stamford Hill, mas os homens da comunidade, com seus casacos negros e seus chapéus cobertos elegantemente com um plástico branco para proteger da chuva, estão por toda a parte. A rua principal tem uma aparência antiga: exceto por um Boots, ela escapou da invasão das cadeias de lojas. Lojas de ferragens fornecem os óbvios serviços úteis. E, enquanto é fácil encontrar comida kosher e padarias, é difícil encontrar um bar ou restaurante.

"Nada disso é necessário" explica Menachem Blum, um amigo do grupo que se juntou à manifestação pró-palestinos em Trafalgar Square. "Suponha que alguém queira relaxar: basta se sentar em casa com uma xícara de chá ou café, talvez com um amigo. Mas, definitivamente não com uma mulher, a menos que seja de sua própria família." Sentando em volta de uma grande mesa em uma de suas casas, os rapazes do Neturei Karta sofrem para me garantir que não sentem falta de nada quando seu único divertimento são os festivais religiosos e as celebrações de eventos da vida, como casamento. "Os gentios precisam de algo para elevar o espírito, por isso eles realizam uma porção desses festivais", diz Beck. "Na religião judaica, porque tudo é tão espiritual, muito embora haja celebrações, elas são apenas uma forma de continuar esta coisa espiritual. A religião é nossa força de vida, nossa felicidade. Tudo o mais é secundário."

Um compromisso para toda a vida com o ensinamento religioso governa a vida de todos os homens ortodoxos. Muitos optam por trabalhar meio expediente para devotar parte do dia ao estudo do corpo de leis religiosas que compõe a Torá, muitas vezes trabalhando em grupos ou em pares nas sinagogas. Alguns, se tiverem condições, estudam tempo integral, com o objetivo de conseguir um posto de rabino. A comunidade aprecia a vida de estudo, oferecendo apoio financeiro e  recompensando os estudantes avançados com o título honorífico de rabino. Muitas vezes, o erudito reembolsa a comunidade, oferecendo aos meninos educação religiosa.

Trata-se de uma forma de vida que traz poucas recompensas materiais, conforme se verifica pelos  altos níveis de privação da comunidade de Stamford Hill. Há pouca procura por uma carreira: muitos empregos são administrativos ou em pequenos negócios, os quais exigem pouca qualificação profissional.

A vida espiritual não é uma opção para as mulheres. "Nossas esposas são felizes em ser donas de casa e cuidar das crianças", diz o pai de quatro filhos, Yakov Weisz, rapidamente, com uma leve sugestão de desaprovação à minha pergunta. Para seguir uma educação que enfatiza as habilidades práticas, eles precisarão de mulheres que se devotem à educação das crianças.

Embora de um modo geral a televisão e os livros não religiosos sejam proibidos, pode ser uma luta evitar a influência da sociedade dominante. Quando os pais levam seus filhos a West End para comprar roupas e sapatos, eles instruem suas meninas a evitar olhar para os corpos expostos e para os anúncios sexy. Muitos deixam os meninos em casa. "É muito difícil", admite Weisz. "Há muita imoralidade nas ruas. Ando de transporte público o mínimo possível".

Esther Sterngold sente que teve sorte. Embora ela tenha oito filhos e seja o principal ganha-pão, seu marido Moshe pode estudar tempo integral. "O cenário ideal, que todo mundo deseja, é ter um marido que se senta e estuda para ficar no mundo de erudição. Eu escolhi este tipo de vida e agradeço a Deus por ter conseguido ajudar", diz ela.

Num espaço alinhado com livros religiosos na casa da família, Moshe explica uma visão de mundo onde a teologia e a política estão implacavelmente ligados. "As pessoas religiosas não aceitam o conceito sionista. Elas não querem que seus filhos aprendam a cultura sionista ou que sirvam no exército sionista. Todos os rabinos judeus, antes da criação do estado sionista, lutaram contra isto.

Como fundadora e diretora da Fundação Interlink, que fornece apoio para o setor de vonluntariado do Judeu Ortodoxo, Esther Sterngold é uma espécie de especialista na construção da infraestrutura para manter a auto-suficiência da comunidade. Extrovertida e articulada, ela é apaixonada pelo seu trabalho, que a mantém em contato com várias organizações não judaicas. Ela partilha das opiniões anti-sionistas do marido e discute a questão do Oriente Médio. Mas, como mulher, ela não tem lugar na vida pública e não pode participar do Neturei Karta. Suspeito que nosso encontro só aconteceu porque seu marido quer o seu apoio quando estiver com uma jornalista.

Enquanto Moshe expõe os pontos mais delicados da história sionista, sua esposa ouve com admiração, ela explode: "É aí que não sei nada. São anos e anos de trabalho. Quando ouço meu marido falar fico admirada." Imagino se ela também não gostaria de ter a oportunidade de estudar. "Sim. Gostaria de ter um quadro lógico. Mas", ela ri, em lugar de se lamentar, "estou muito ocupada!"

Não é fácil ser um judeu messiânico, catapultado para o ativismo do século XXI. Yakov Konig, um pai de 14 filhos, era eletricista até que problemas de saúde o forçaram a se aposentar, suspira quando ligo para ele pela primeira vez. Um homenzinho com uma expressão séria, ele se divide entre o desejo de uma vida calma própria para um judeu ortodoxo e a necessidade de falar. Mas quando ele começa a falar, as palavras vêm aos borbotões. "Temos que apresentar ao mundo um caso contra a difamação de nosso nome. Os sionistas roubaram nosso nome, o nome de Israel, eles roubaram nosso caráter. Ficamos manchados por seus atos de crueldade e morte e todos os que eles praticaram nos últimos 54 anos. É muito frustrante."

Os perigos de falar surgiram recentemente quando um deles recebeu uma série de telefonemas com ameaças de morte, que estão sendo investigadas pela polícia no momento. O destinatário não acha que eles tenham vindo da comunidade ortodoxa e sim dos "militantes sionistas - os cabeças quentes". Ele afasta a hipótese de que seja um sinal de que o atrevimento do Neturei Karta os afastará irremediavelmente do resto de sua comunidade. "Em duas ou três semanas, tudo voltará ao normal", diz ele. "Iremos aos mesmos casamentos e cerimônias como o resto da comunidade."

Não obstante, as tensões existem. Até recentemente, o Oriente Médio era a questão preferida nas conversas de almoço só para mulheres do escritório de Esther Sterngold. "No último mês, ou dois, talvez, transformou-se em área proibida", diz ela. "Não falamos sobre isto em absoluto."

Enquanto muito da discordância possa vir de adeptos de Israel, alguns membros da comunidade estão mais preocupados com as alianças com outros grupos de fé. "Existe muito sofrimento no fato de que muitos de nós não percebem a importância do que estamos fazendo e, por isso, ficamos entre os dois lados", diz Konig. "Nossa religião é passada de geração a geração e o contato direto com outras religiões é considerado perigoso."

Os membros do Neturei Karta estão, como uma minoria dentro de outra minoria, na posição mais delicada. Eles têm seus próprios códigos de literatura e história, que falam dos mártires da causa, como Jacob de Haan, um jornalista holandês assassinado, em 1924,  enquanto organizava conversações contra a criação de um estado judeu em Jerusalém pela força paramilitar sionista, o Haganah. Alguns até carregam um passaporte oficioso e falso que, uma declaração dentro dele explica, existe como "meio de possibilitar a um judeu provar sua identidade para que não seja confundido com os sionistas."

Esta identidade alternativa complica sua alegação central e repetida de que eles não são diferentes de seus companheiros judeus religiosos. "Todo judeu ortodoxo acredita que o sionismo é um mal", diz Konig. "Mas nem todos querem se mostrar e dizer isto claramente. Muitos são passivos e o resto está muito assustado; eles não são soldados."

Este medo é uma explicação que o Neturei Karta dá para a questão muito debatida de como vários companheiros judeus partilham de suas idéias. Os números sobem, dizem eles, de acordo com os níveis de coragem e pressão externa. Uma outra explicação, ainda mais difícil de provar, é a afirmação de que os religiosos da comunidade judaica pró-Israel esteja sofrendo de falsos escrúpulos - eles são Neturei Karta, só que não percebem. Beck, o mais velho, diz: "se alguém perguntar para a média de judeus ortodoxos praticantes, "Precisamos de um estado?", a maioria dirá "Não, não precisamos." O problema é que, uma vez que o estado foi criado, existem diferentes idéias. Acima de tudo, existem os homens bombas, pessoas inocentes estão sendo mortas - isto confunde as pessoas e assim elas não conseguem pensar claramente."

Este é um ponto de discussão, se a atemporariedade do Neturei Karta os deixou perigosamente fora de contato, ou se é precisamente isto que lhes dá uma clara visão do que os outros perderam no fermento das emoções fomentadas pelo Oriente Médio. Qualquer que seja o caso, o pequeno grupo de Londres tem uma viva consciência do clima atual, as estacas estão mais altas do que nunca. "O nome judeu está ficando pior a cada dia", diz Weisz. "Sinto-me na obrigação de defender em nome da Torá."

E para Hochhauser, lembrando de seu grande dia numa demonstração, vale a pena. "Alguém chegou a mim; ele disse que por 39 anos odiou os judeus. E agora, quando ele nos viu, sentiu que tinha que se aproximar e apertar as mãos. Havia lágrimas em seus olhos."

The Observer, 21/07/2002

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