Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso
INTRODUÇÃO
"É impossível, hoje, compreender um mundo cada vez mais complexo, se acreditamos que há somente uma única maneira de o representar ou se nos limitamos, apenas, a uma representação globalizante. As grandes "visões" que frisam a oposição entre o centro e a periferia, o norte e o sul, entre aquilo que, até ontem chamávamos de leste e oeste, são certamente úteis. Contudo, mostram-se cada vez mais insuficientes para serem demasiadamente esquemáticas. Faz-se necessário combinar as diferentes representações do mundo." (Ives Lacoste)
A Chegada do Ocidente ao Oriente
O mundo ocidental vinha, aos poucos, penetrando grandes áreas que tinham sido parte do império muçulmano, e na última parte do século XIX, no vácuo deixado pela longa decadência e declínio do império otomano, os europeus chegaram para dominar o Oriente Médio. Os primeiros europeus a fincar o pé naquela região foram os venezianos que, desde o século XIII, tinham estabelecido postos comerciais, no que hoje corresponde ao Líbano, Síria e Egito, e que controlavam a maior parte da navegação entre os portos europeus e árabes. Em 1497, depois que Fernando e Isabela expulsaram os muçulmanos de Granada, terminando com o último reduto islâmico na Europa, Vasco da Gama, em 1498, chefiando uma esquadra de quatro navios portugueses em direção à África , encontrou um novo caminho para as Índias. Mercadores e fragatas holandesas, inglesas e francesas, começaram a fundar postos comerciais ao longo da costa do oceano Índico, quebrando, finalmente, tanto o monopólio veneziano como o comércio no mar Mediterrâneo, por onde o Oriente Médio tinha prosperado por 1000 anos.
O processo de penetração européia foi gradual e complexo mas houve, não obstante, pontos decisivos claramente identificáveis. No século XVI, por exemplo, o império otomano fez, voluntariamente, uma série de concessões aos europeus, chamadas de "Capitulações" - concessões que davam à Europa vantagens no comércio estrangeiro no império. Um outro ponto decisivo foi a invasão do Egito, em 1798, por Napoleão Bonaparte. Esperando cortar as rotas inglesas para a Índia e enfraquecer seu poder marítimo e econômico, Napoleão aniquilou os mamelucos (que então governavam o Egito) e rapidamente ocupou o país. Derrotando o Egito, à época ainda uma parte do império otomano, Napoleão expôs a fraqueza interior dos sultões, tanto militar quanto administrativa, destruiu o mito do poder otomano e inaugurou mais de 150 anos de intervenção política ocidental direta .
A procura por matéria-prima,
mercados, bases militares e colônias pela Europa durante todo o século XIX,
finalmente alcançou a maior parte do que tinha sido o império árabe. Em 1820, a
Grã-Bretanha impôs um pacto às tribos árabes da costa do golfo arábico; em 1830, a
França ocupou a Argélia; em 1839 os ingleses ocuparam Aden, uma entrada estratégica
para o mar Vermelho; e em 1869, Ferdinand de Lesseps, com a proteção do imperador
francês, terminava o que viria a ser, e ainda é, uma das artérias-chave para a
navegação mundial, o Canal de Suez.
A cultura ocidental se espalhou sob o controle político e econômico do Ocidente. No
Líbano, missionários de diversos países fundaram uma rede de escolas e universidades. A
introdução das modernas idéias ocidentais estimulou o crescimento do nacionalismo
árabe, contribuindo para o renascimento da literatura árabe, e fornecendo um impulso
poderoso de modernização. Além da educação, o contato com o Ocidente levou a
melhorias nos cuidados médicos e à introdução de técnicas ocidentais de agricultura,
comércio e indústria. Mas, convém ressaltar que, de um modo geral, a
dominação ocidental só trouxe benefícios às nações européias, com um elevado custo
político e social para o mundo árabe. Embora o Canal de Suez, por exemplo, tenha sido de
imenso valor para o Egito, por aproximadamente um século, os lucros foram carreados para
os acionistas europeus da companhia que administrava o Canal. Ocidente e Oriente
estimularam os esforços no sentido de modernizar partes do Oriente Médio, o que resultou
em dívidas externas contraídas pelos governantes da região e que levaram ao controle
financeiro e à dominação política por parte da Europa. Foi essa série de eventos que
culminou com a França ocupando a Tunísia em 1881, e os ingleses controlando o Egito, em
1882. Mais tarde, em 1911, a Itália ocupava a Líbia.
A resistência à penetração européia assumiu diversas formas. Nas cidades, os intelectuais árabes debatiam se a modernização, ou um retorno às suas raízes, seria o caminho mais efetivo para expulsão da dominação estrangeira e, consequentemente, para a independência. Por todo lugar, líderes muçulmanos como o Mahdi do Sudão, e Abd al-Qadir al-Jazairi, na Argélia, tomavam atitudes mais diretas. Essas lutas foram mais tarde romanceadas e distorcidas, numa onda de livros e filmes, como por exemplo, os que versavam sobre a Legião Estrangeira Francesa. Outros intelectuais, como o egípcio Mohammad 'Abduh e seu discípulo sírio, Rashid Rida, empreenderam a reforma do sistema educacional e o restabelecimento dos valores islâmicos, adaptando-os aos conceitos modernos - necessidade por demais sentida pela maioria dos pensadores muçulmanos dos séculos XIX e XX.
Uma série de escritores começaram a lançar novas idéias sobre a forma como a sociedade e o estado deviam ser organizados. Foi nesta geração que a idéia do nacionalismo tornou-se explícita entre turcos, árabes, egípcios e tunisinos. Os vários movimentos nacionais resultaram em respostas para os diferentes desafios. No Egito, surgia a Fraternidade Muçulmana (Ikhwan), organização fundada por Hasan al-Banna. O nacionalismo turco foi uma reação à crescente pressão européia e ao colapso do ideal do nacionalismo otomano. O nacionalismo otomano assumiu mais de uma coloração islâmica, mas quando, sob Abdulhamid, a aliança entre o trono e a elite governante turca se partiu, a idéia de uma nação turca emergiu, isto é, o império poderia sobreviver com base na solidariedade de uma nação, unida por uma língua comum.
Uma vez que o império tornou-se um estado turco-árabe, qualquer tentativa de enfatizar a supremacia do elemento turco podia afetar o equilíbrio entre eles e os árabes e, por reação, o nacionalismo árabe pouco a pouco tornou-se explícito. Nesta fase, o nacionalismo não era dirigido especificamente contra a invasão do poder europeu e sim contra os problemas de identidade e de organização política do império. Em que condições a comunidade muçulmana otomana continuaria a existir? Estender-se-ia além do império para aqueles países de fala árabe? Egito, Tunísia e Argélia tinham problemas específicos e, por isso, seu nacionalismo assumiu formas diferentes. Os três tinham sido entidades políticas separadas do império otomano por um longo tempo, primeiro por causa de suas próprias dinastias locais e depois porque ficaram sob domínio francês e inglês por um longo tempo.
Assim, quando o nacionalismo egípcio surgiu, foi uma tentativa de limitar a ocupação inglesa, ou acabar com ela, e foi movido mais por interesses caracterizadamente egípcios, do que árabes, otomanos ou muçulmanos. Mas, não era uma força unificada: havia uma divisão entre aqueles que exigiam a retirada dos ingleses e aqueles que, sob a influência das idéias do "modernismo islâmico", achavam que a primeira necessidade era o desenvolvimento social e intelectual e que o Egito poderia lucrar com a presença inglesa em seu território.
Da mesma forma, em Túnis, havia um tom de sentimento nacionalista na resistência contra a invasão francesa em 1881, mas o que prevalecia era a idéia de que uma mudança na política francesa poderia dar aos tunisinos um acesso maior à educação francesa e a maiores oportunidades no governo. Na Argélia, conquanto o nacionalismo se expressasse em termos tradicionais, surgiu o movimento dos "Jovens Argelinos", que reivindicava educação na França, reformas financeira e jurídica e direitos políticos mais amplos dentro da estrutura vigente.
O que é fato é que esses movimentos foram conceitos de uma minoria urbana letrada e expressavam uma nova relação com o estado e com o mundo externo, em termos de novos conceitos. É possível que tenha havido alguns choques de pensamento e sentimento, que nas gerações posteriores iriam dar forma e vigor aos movimentos nacionalistas. O antigo sistema de escolas tinha perdido sua posição na sociedade. O estudo nelas não mais garantia um posto no governo; como os novos métodos de administração foram introduzidos, era preciso uma nova espécie de experiência e qualificação, e o conhecimento de uma língua européia tornou-se quase que indispensável. Até o código civil do Império Otomano, com os fundamentos na shari'ah, estava sendo remodelado.
No entanto, as antigas escolas continuavam a existir e produziram obras sobre teologia e lei dentro das concepções islâmicas. Os estudantes mais vigilantes em relação aos novos tempos, começaram a expressar descontentamento com a espécie de ensinamentos que recebiam naquelas escolas. Algumas tentativas foram feitas no sentido de se reformá-las, em particular al-Azhar, mas sem grande sucesso, porque elas ainda usufruíam de grande conceito e poder na sociedade, como canais pelos quais os rapazes de famílias rurais pobres tinham acesso à cultura. No final do século XIX, al-Azhar gozava de grande autoridade mas, em contrapartida, sofria o mais ferrenho controle sobre suas atividades. No campo, no entanto, os professores ainda exerciam algum poder. Na época da expansão imperial, os líderes e porta-vozes da resistência rural vieram basicamente dos homens de religião. Aos poucos os movimentos de resistência foram sendo mobilizados com o uso dos símbolos islâmicos. O exemplo mais impressionante da força política de um líder religioso foi dado pelo Sudão, no movimento que terminou com o governo egípcio nos anos 1880. Muhammad Ahmad, que tinha alguma experiência no treinamento sufi, era respeitado por seus seguidores como o mahdi, aquele enviado por Deus para restabelecer o reino da justiça na mundo. Seu movimento se espalhou rapidamente , acabou com o controle egípcio e criou um estado baseado nos ensinamentos do Islam.
No Império Otomano, o sultão estava em posição de canalizar o sentimento religioso em seu próprio interesse. A partir de meados do século XIX, houve um esforço sustentado pelo governo para enfatizar o papel do sultão como defensor do estado que, virtualmente, era o último repositório do poder e independência políticos do Islam sunita.
Em 1914, as rivalidades européias chegaram ao limite e o Império Otomano era o ponto que mais chamava a atenção, por causa da sua importância para os interesses que estavam em jogo. Ainda que as causas da guerra estivessem nas desavenças entre austríacos e russos, por causa dos Balcãs, quando os otomanos entraram na guerra ao lado dos alemães e dos austríacos, contra a Inglaterra, França e Rússia, seu próprio território transformou-se num campo de batalha. O Império perdeu suas províncias árabes e ficou confinado à Anatólia e a uma pequena parte da Europa. O sultão ficou sob o controle das esquadras e de representantes dos aliados em sua capital, e foi compelido a assinar um tratado de paz desfavorável, o Tratado de Sèvres, que impunha uma tutela estrangeira sobre seu governo, que possibilitou a ascensão ao poder de Mustafá Kemal. A população turca da Anatólia, liderada por jovens oficiais do exército, iniciaram o movimento Jovens Turcos, que fortalecido pelo estímulo dos Aliados para que os gregos ocupassem a parte ocidental da Anatólia, resultou na criação de uma república turca e na abolição do sultanato. E o Império Otomano chegava ao fim.
Nos territórios árabes, a Inglaterra reconheceu a independência da Arábia Saudita (1927), o Líbano e a Síria tornaram-se mandatos franceses, enquanto que o Iraque e a Palestina ficaram com os ingleses (1922).
A chegada do Ocidente na Ásia
O processo de penetração ocidental na Ásia foi diferente e mais complexo. A Ásia não era um continente de tribos dispersas, tinha muitos povos de culturas antigas e complexas, com tradição de unidade e grandeza. Por outro lado, a Rússia, desde muito tempo ocupara a enorme extensão da Sibéria e contava com facilidades especiais para expandir suas fronteiras na Ásia. Em fins do século XVII, os russos entraram no Turquestão, quase até os limites da Índia. Os ingleses rapidamente enviaram uma expedição ao Afeganistão, com o intuito de impedir o avanço da influência russa na região. No norte da Pérsia, os russos gozavam de uma situação privilegiada. No sudeste da Ásia, os principais disputantes eram a França e a Inglaterra e a Tailândia (conhecida como Sião) era o único país a permanecer como estado independente.
Desde a expansão marítima dos séculos XV e XVI, o interesse europeu já se manifestava. Através da fundação de feitorias e da obtenção de concessões, os europeus estabeleceram relações comerciais, principalmente de produtos exóticos, que se mantiveram até o século XVIII, quando a Ásia passou a ser encarada como um atraente mercado consumidor da produção da nascente indústria fabril européia. A Revolução Industrial levou os países industrializados a buscar novos mercados para vender seus produtos e para obter matérias-primas a baixo preço. Mas, a ação inglesa só se fez presente a partir do século XVII, através da Companhia das Índias Orientais que, obtendo o monopólio do comércio indiano, fundou entrepostos comerciais. Superando a concorrência francesa e a resistência nativa, a Companhia ocupou quase todo o país no século XVIII, cabendo a administração a um Governo-Geral, com sede em Calcutá.
No decorrer do século XIX, o desenvolvimento do capitalismo inglês importou em novas diretrizes de consequências desastrosas para a Índia. Interessados em ampliar a produção de matérias-primas os ingleses confiscaram propriedades rurais, suprimiram a servidão camponesa e estimularam a produção de algodão, cânhamo e frutas, e estabeleceu o pagamento de um imposto individual em dinheiro, que obrigava os nativos a buscar um trabalho assalariado, ampliando, assim, a oferta de mão-de-obra e o mercado consumidor da produção fabril inglesa. A invasão dos tecidos ingleses, favorecidos por tributos alfandegários reduzidos, provocou a ruína do artesanato local. A reação indiana foi a Revolta dos Sipaios, empreendida principalmente pelas tropas nativas e foi duramente reprimida pelos britânicos. A Índia tornou-se a principal fornecedora de algodão bruto e compradora dos tecidos ingleses. A consolidação do domínio inglês na Índia deu à Inglaterra importante ponto de apoio para a sua política imperialista no Extremo Oriente, e possibilitou o controle de uma sociedade que viria a fornecer excelentes soldados para os exércitos ingleses em suas campanhas de conquista.
Cronologicamente, a luta dos povos asiáticos contra o domínio imperialista europeu antecedeu à Revolução Africana. Desde a I Guerra Mundial multiplicaram-se movimentos nacionalistas que, valendo-se das rivalidades entre as potências coloniais, desenvolveram campanhas pela libertação, as quais, em geral, só atingiram seus objetivos após a II Guerra Mundial. Para isso muito contribuiu o enfraquecimento da França e da Inglaterra, que não conseguiram se recuperar dos desastres sofridos diante do Japão. O mito da "superioridade do homem branco" desmoronou-se diante das derrotas das potências coloniais ocidentais frente aos exércitos japoneses e estimulou as populações asiáticas. O Nacionalismo, que fora encorajado nas colônias pelos próprios colonizadores, com o objetivo de enfraquecer seus adversários, como ocorrera no Oriente Médio contra os turcos otomanos, acabou voltando-se contra eles próprios. As tropas alistadas pelos franceses para combater na Europa, oriundas da Indochina, e pelos ingleses da Índia, regressaram aos seus países com novas noções de independência nacional e com uma firme decisão de não mais aceitarem a antiga situação de inferioridade.
Em 1945, Sukarno proclama a independência da Indonésia, que não foi reconhecida pelos holandeses. Em 1950, instituiu-se uma República Federativa e Parlamentar na Índia. Em janeiro de 1979, forças populares iranianas derrubaram a opressiva monarquia do xá Mohammad Reza Pahlevi e proclamaram a República Islâmica do Irã, chefiada por um conselho revolucionário.
No território indiano ainda
persistem algumas questões pendentes de solução, sendo a mais importante a que se
refere à Caxemira, e que será tratada a parte.
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