AS VIAGENS DE IBN BATUTA
Ibn Batuta (1307d.C -
1377d.C) foi o equivalente árabe de Marco Polo. Fez a volta ao mundo e contou muito
do que viu. Em seu livro "Travels in Asia and Africa", não só traça
um retrato fiel de si mesmo, com as suas virtudes e fraquezas, como evoca toda uma época.
É impossível não sentir uma atração pelo personagem que se revela, generoso em
excesso, intrépido, amigo do prazer, mas controlado por uma profunda veia de piedade e
devoção, um homem com todas as características de um pecador, mas com alguma coisa de
santo.
Sobre os turcos
Em Ladziqiya, embarcamos em uma grande galé
pertencente ao genovês, cujo mestre era chamado Martalmin, e partimos para o país dos
turcos (*),conhecido como Bilad-ar-Rum (Anatólia), porque
era a terra deles em tempos antigos (1). Mas tarde foi conquistada pelos
muçulmanos, mas ainda havia um grande número de cristãos por lá, governados pelos
muçulmanos turcomanos. Ficamos dez dias no mar e o cristão nos tratou gentilmente e não
nos cobrou pela passagem. No décimo dia, alcançamos Alaya, onde as províncias começam.
Este país é um dos melhores do mundo; nele Deus reuniu as características que estão
dispersas em outras terras. Seu povo é o mais belo, o mais limpo com as roupas, o mais
requintado com a comida e o mais amável em toda a criação. Sempre que parávamos nesse
território, seja numa hospedaria, ou numa casa de família, nossos vizinhos homens e
mulheres (elas não usam o véu), vinham perguntar por nós. Quando partimos, vieram
despedir-se de nós como se fòssemos seus parentes ou amigos próximos e era possível
ver as mulheres chorando. Eles assam o pão apenas uma vez por semana e os homens
costumavam nos presentear com pães frescos no dia em que eram assados, além de
deliciosas carnes, dizendo "as mulheres mandaram isto e pedem por suas
orações". Todos os habitantes são sunitas ortodoxos; não existem sectários ou
heréticos entre eles, mas mastigam hashish (cânhamo indiano) e
não vêem mal nisso.
Alaya é uma grande cidade litorânea (2) É habitada pelos turcomanos e é
visitada pelos mercadores do Cairo, Alexandria e Síria. A região é dotada de madeira
que é exportada de lá para Alexandrietta e Damietta, de onde é levada para outras
cidades do Egito. Existe uma cidadela fantástica e magnífica, construída pelo sultão
Ala ad-Din, na parte alta da cidade. O qadi da cidade me levou para
encontrar com o rei de Alaya, que é Yusuf Bek, filho de Qaraman, sendo que bek,
em sua língua, quer dizer rei. Ele vive a uma distância de 10 milhas da cidade. Nós o
encontramos sentado no alto de uma colina na praia, com os emires e vizires abaixo dele e
as tropas á sua volta.Ele tinha seu cabelo pintado de preto. Eu o saudei e respondi às
suas perguntas sobre minha visita à sua cidade e depois que me retirei ele me enviou um
presente em dinheiro.
De Alaya segui para Antaliya (Adalia), uma cidade
muito bonita (3). Ela abrange uma região imensa, e apesar do tamanho é
uma das cidades mais atraentes de serem vistas em qualquer lugar, além de ser muitíssimo
populosa e bem projetada. Os habitantes vivem em quarteirões separados, de acordo com as
classes. Os mercadores cristãos moram num quarteirão da cidade conhecido como Mina (o
porto), que é circundado por muros, os seus portões se fecham à noite e durante o
serviço das sextas-feiras. (4) Os gregos, que foram seus primeiros
habitantes, vivem em outro quarteirão, os judeus em outro, e o rei e sua corte e os
mamelucos em outro, sendo que cada um desses quarteirões é igualmente murado. O
resto dos muçulmanos vivem na cidade principal. Rodeando toda a cidade e todos os
quarteirões citados, existe um outro grande muro. A cidade possui pomares e produz frutas
finas, inclusive uma espécie admirável de damasco, a que eles dão o nome de qamar
ad-din, que tem uma semente doce em seu interior. Esta fruta é seca e exportada
para o Egito, onde é vista como um grande luxo.
Ficamos aqui na mesquita da cidade, cuja principal era Shaykh Shihab ad-Din al-Hamawi. Em
todas as terras habitadas pelos turcomanos na Anatólia, em cada comarca, cidade ou vila,
encontramos membros da organização conhecida como Akhiya, ou Fraternidade Jovem. Em
nenhum outro lugar do mundo você encontrará homens tão ávidos em recepcionar os
estrangeiros, tão rápidos para servir a comida e satisfazer os desejos dos outros
e tão prontos a suprimir a injustiça e a matar os agentes de polícia (tiranos) e os
descrentes que se juntam a eles.Um Irmão Jovem, ou akhi na língua
deles, é aquele que é escolhido por todos os membros de sua classe social, ou um
solteiro, ou entre aqueles que vivem em retiro ascético, para ser o líder. Esta
organização também é conhecida como Futuwa, ou a Ordem da Juventude.
O líder constrói uma hospedagem e a decora com tapetes, lanternas e outros utensílios
necessários.Os integrantes de sua comunidade trabalham durante o dia para ganhar seu
sustento e trazem para ele o que ganharam ao final da tarde. Com isso, eles compram
frutas, alimentos e outras coisas necessárias à hospedagem. Se um viajante chegar à
cidade naquele dia, eles o abrigam na hospedagem; aquelas provisões servem para o seu
entretenimento, como convidado deles. Se não houver viajantes eles se reúnem para
partilhar a comida e depois de ter comido, cantam e dançam. Pela manhã, retornam a seus
afazeres e trazem seus ganhos para o seu líder ao final da tarde. Os membros são
chamados de fityan (jovens) e seu líder, como dissemos, é o akhi.
(5)
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NOTAS: 1-5
1. Bilad ar-Rum, literalmente "a terra dos gregos", embora usado de um modo
geral pelos territórios bizantinos, foi usado mais especificamente para a
província fronteiriça da Anatólia. Depois de algumas conquistas temporárias nos
primeiros séculos, foi finalmente conquistada pelos turcos seljúcidas entre 1071 e 1081.
Ao final do século XIII, toda a península, com exceção das partes que estavam com os
cristãos (Bizâncio,Trebizond e Armênia), ou com o governante do Iraque, tinham jurado
fidelidade ao sultão seljúcida de Konia, mas um pouco antes de 1300 começou a se
desintegrar em pequenos reinos locais, cujos territórios foram aos poucos sendo
absorvidos pelo império otomano.
2. O porto de Alaya foi construído por um dos maiores sultões seljúcidas do Rum, Ala ad-Din Kay-Qubad I (1219-1237), e depois dele foi rebatizado. Para os mercadores ocidentais era conhecido como Candelor (de seu nome bizantino kalon oros). O Egito, sendo notoriamente carente de madeira, sempre precisou de importar grandes quantidades para a construção de sua armada, etc.
3. Adaliya, conhecida pelos mercadores ocidentais como Satalia, foi o mais importante entreposto comercial da costa sul da Anatólia, sendo o comércio mais ativo entre os egípcios e cipriotas. O limão ainda é chamado no Egito de addaliya.
4. O fechamento dos portões da cidade e a exclusão de cristãos à noite e durante as horas do serviço das sextas-feiras foi observado até bem recentemente em vários lugares do Mediterrâneo, como Sfaz, provavelmente como uma medida de precaução contra ataques de surpresa.
5. A história das organizações chamadas de futuwa
ainda é obscura. Aparecem pela primeira vez no século XII de diferentes formas, e podem
estar relacionada com as ordens sufis ou derviches. A palavra futuwa,
"coragem", sempre foi usada pelos derviches com um sentido moral, definido como
"abster-se da injúria, dar generosamente, e não fazer queixas" e a roupa
remendada, marca de um sufi, era chamada por eles de libas al-futuwa, "a
roupa da coragem". Era usado num sentido mais agressivo entre as associações dos
"Guerreiros da Fé", principalmente porque se degeneraram em bandos de ladrões
e é uma referência à cerimônia de admissão num desses bandos em Bagdá, em meados do
século XII, onde a calça é citada como al-futuwa simbólico (Ibn al-Athir).
Alguns anos mais tarde, Ibn Jubayr encontrou em Damasco uma organização chamada Nubuya,
que estava engajada no combate das seitas xiítas na Síria. Os membros da agremiação
guerreira, cuja regra era que nenhum membro devia pedir ajuda em razão de qualquer
desgraça que pudesse cair sobre ele, elegiam pessoas adequadas e, da mesma forma,
agraciava-os com a roupa quando admitidos.
Em 1182, o califa an-Nasir, tendo sido investido com o libas, ou calças, por um
shaykh sufi, teve a idéia de organizar a Futuwa como uma ordem de Cavalaria
(provavelmente de acordo com o modelo franco), assumiu o comando da ordem e
distribuiu libas para príncipes e outros personagens de seu tempo, como
sua insígnia. A cerimônia de aceitação incluía colocar a calça de forma solene e
beber "da taça da coragem" (ka's al-futuwa), que continha água e sal, ao
invés de vinho. A ordem tirou de seus ascendentes sufis, uma genealogia fictícia que ia
até o califa Ali, e continuou a existir por algum tempo depois do reinado de Nasir, mas
sem o vigor de antes. A Fraternidade que Ibn Batuta encontrou em Konia, e que era
diferente das outras agremiações da Anatólia por causa da sua insígnia especial da
calça e por sua alegação de descender diretamente de Ali, foi provavelmente um
remanescente da ordem fundada pelo califa romântico. As organizações da Anatólia que
restaram, parecem ter sido associações comerciais locais com uma forte influência do
sufismo, estranhamente combinada com uma tendência política para com o auto-governo
local, contra a tirania dos sultões turcos. (Ver Thorning, Turkische Bibliothek,
Band XVI (Berlin, 1913), e Wacif Boutros Ghali, La Tradition Chevaleresque des Arabes
(Paris, 1919), pp.1-33).
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* - Turcomano é o termo usado por Ibn Batuta para os atuais turcos. Quando ele cruza as
estepes do mar Negro, ele dá o nome de "turcos" aos povos daquela região.
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Paul Halsall Feb 1996
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