AS VIAGENS DE IBN BATUTA
Ibn Batuta (1307d.C -
1377d.C) foi o equivalente árabe de Marco Polo. Fez a volta ao mundo e contou muito
do que viu. Em seu livro "Travels in Asia and Africa", não só traça
um retrato fiel de si mesmo, com as suas virtudes e fraquezas, como evoca toda uma época.
É impossível não sentir uma atração pelo personagem que se revela, generoso em
excesso, intrépido, amigo do prazer, mas controlado por uma profunda veia de piedade e
devoção, um homem com todas as características de um pecador, mas com alguma coisa de
santo.
Na Anatólia - pag. 126
Um dia depois de nosso chegada a Antalyia, um desses jovens veio ter com o shaykh Shihab ad-Din al-Hamawi e falou qualquer coisa em turco, que eu ainda não entendia. Vestia umas roupas velhas e trazia um chapéu sobre a cabeça. O shaykh me perguntou "sabe o que ele está dizendo?" "Não", eu disse, "não sei." Ele respondeu "ele o está convidando e ao seu grupo para ir comer com ele." Fiquei surpreso, mas disse "muito bem" e quando o homem foi embora, disse ao shaykh: "Ele é um homem pobre e não tem condições de nos receber e não gostaríamos de ser um peso para ele." O shaykh desatou a rir e disse: "Ele é um dos shaykhs da Irmandade dos Jovens. Ele é um sapateiro e um homem muito generoso. Seus companheiros, cerca de duzentos homens pertencentes aos mais diversos ramos de comércio, escolheram-no para seu líder e construíram uma hospedagem para receber seus hóspedes. Tudo o que ganham durante o dia, gastam à noite."
Depois que fiz a oração do maghrib, o mesmo homem voltou e nos levou para a hospedagem. Encontramo-nos em um belo prédio, acarpetado com lindos tapetes turcos e iluminado por vários candelabros de vidro iraquiano. Inúmeros rapazes em pé em fila no sagão, vestindo longos mantos e botas e cada um trazia uma faca amarrada à cintura por uma faixa. Na cabeça, traziam chapéus de algodão branco e preso no alto tinha um pedaço de alguma coisa de dois dedos de largura. Quando se sentaram, cada homem retirou o chapéu e o colocou em frente e na cabeça ficaram com um outro tipo de chapéu de seda, ou de outro tecido semelhante. No centro do saguão tinha uma espécie de plataforma, colocada para os visitantes. Quando ocupamos nossos lugares, eles serviramum grande banquete, seguido de frutas e doces e depois eles começaram a cantar e a dançar. Estávamos admirados e profundamente surpresos com essa magnanimidade e generosidade...
De Burdur, seguimos para Sabarta (Isparta) e depois para Akridur (Egirdir), uma cidade grande e populosa com excelentes bazares. Existe aqui um lago de água doce, onde os barcos vão, em dois dias, até Aqshahr e Baqshahr e a outras cidades e vilas. O sultão de Akridur é um dos principais governantes deste país. Trata-se de um homem honrado...
Ele mandou alguns cavaleiros nos escoltarem até a cidade de Ladhiq (Denizli), porque o país está infestado por uma tropa de bandidos, chamados jarmiyan, e que têm uma cidade chamada Kutahiya ...
Quando entramos na cidade, passamos por um bazar. Alguns homens saíram de suas barracas e tomaram as rédeas de nossos cavalos e outros surgiram opondo-se àquela atitude e a discussão continuou até que alguns deles sacaram as facas. Nós, é claro, não sabíamos o que eles diziam e estávamos com medo deles, achando que eles eram os bandidos e que aquela era a cidade deles. Por fim Deus nos mandou um homem que sabia árabe e ele explicou que eles representavam dois ramos da Fraternidade dos Jovens e que cada um discutia para ver quem iria nos abrigar. Ficamos atônitos com tal generosidade. Finalmente, foi decidido que eles tirariam a sorte e que nós nos hospedaríamos com o vencedor ...
Depois de receber
presentes do sultão, partimos para Quniya (Konia). É uma grande cidade, com
prédios bonitos e tem muitos riachos e pomares. As ruas são excessivamente
largas e os bazares são admiravelmente planejados, onde cada ofício tem o seu
lugar. Diz-se que a cidade foi construída por Alexandre ...
Nesta cidade encontra-se o mausoléu do shaykh Jalal ad-Din (ar-Rumi), conhecido
como Mawalana* (nosso mestre). Ele era tido em grande estima por todos e existe
uma irmandade na Anatólia que alega ter uma associação espiritual com ele e, por
isso, échamada de Jalaliya.
A estória diz que Jalal ad-Din era, no início de sua vida, um teólogo e professor. Um dia, um vendedor de doces chegou à mesquita com um tabuleiro de doces sobre a cabeça deu-lhe um pedeço e foi embora. O shaykh largou suas aulas para segui-lo e desapareceu por alguns anos. Então, ele voltou mas com um espírito desorientado, só falando versos persas que ninguém entendia. Seus discípulos escreveram um livro contendo toda a obra que foi sendo colecionada, chamado Mathnawi. Este livro é muito reverenciado pelas pessoas deste país, elas meditam sobre ele, ensinam e o lêem em suas casas religiosas nas noites de quarta-feira. De Konia, seguimos para Laranda (Karaman), a capital do sultão de Qaraman. Encontrei este sultão fora da cidade, porque ele estava voltando de uma caçada e quando eu apeei do cavalo ele também fez a mesma coisa. É um costume dos reis deste país, apear do cavalo se o visitante fizer o mesmo. Este comportamento de sua parte agrada muito a eles, que se mostram grandemente honrados; se, por outro lado, se você os cumprimentar ainda montado no cavalo eles ficam muito ofendidos e o visitante perde toda a boa vontade deles. Isto aconteceu comigo uma vez com um desses reis. Depois que cumprimentei o sultão de Qaraman, cavalgamos juntos até a cidade e ele mostrou a maior hospitalidade...
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(*) A referência "Mawalana" (ou "Mevlana", em turco) é ao grande poeta sufista Rumi.
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Paul Halsall Feb 1996