Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso
O MUTAZILISMO
Cem anos após a morte de Mohammad, uma abordagem mais racionalista do Islam, influenciada pelo pensamento greco-cristão, começou a desafiar a natureza dogmática e determinista da fé ortodoxa. Aqueles que ensinavam que o homem tinha o livre arbítrio em oposição aos ortodoxos, que acreditavam na vontade de Deus como causa e efeito de tudo o que existe, eram apelidados de qadariyah, porque parecia que eles negavam a pré-ordenação de Deus e o controle sobre todas as coisas e, em vez disso, ensinavam que o homem possuía o qadar, ou seja, o poder para determinar o seu próprio destino.
Esses "livres pensadores" mais tarde ficaram conhecidos como mu'tazilah, um nome que significa "aqueles que se retiraram", supostamente derivado de um incidente onde um certo al-Hasan foi indagado sobre se um grande pecador seria um fiel ou não.
De acordo com este relato, alguém perguntou a um certo al-Hasan al-Basri se um um grande pecador deveria ser encarado como um fiel ou um descrente. Enquanto al-Hasan hesitava, Wasil ibn-Ata, um dos presentes no grupo, entrou na discussão com uma afirmação de que um grande pecador não era senão uma posição intermediária (manzila bayn al-manzilatayn), literalmente "uma posição entre duas posições". Em seguida, ele se retirou para uma outra parte da mesquita, seguido por alguns integrantes daquele grupo, em razão do que al-Hasan observou: "Wasil se retirou (i'tazala) de nosso grupo". A partir dessa observação veio o nome de mu'tazila.
A doutrina de um estado intermediário no tempo, igualmente se tornou um dos princípios básicos do mutazilismo. Uma outra grande diferença entre o mutazilismo e o Islam ortodoxo, diz respeito ao Alcorão, se a Palavra de Deus é criada ou não criada. O mutazilismo ensinava que Deus não tinha lugar, forma, corpo, movimento ou feições, sua palavra devia ser considerada como separada de Seu ser e, portanto, o Alcorão tinha que ter sido criado. Durante o auge da influência mutalizida, quando até um ou dois califas abássidas apoiaram essas opiniões, muitos sábios ortodoxos, inclusive Ahmad ibn Hanbal, foram duramente criticados pelo fato de se oporem a tais idéias.
No auge da sua influência durante o governo do califa al-Ma'mun, a doutrina da eternidade do Alcorão foi proscrita por decreto e os defensores da visão conservadora foram submetidos a chibatadas, prisão e morte. Mas isso fez com que Ibn Hanbal assumisse o papel de mártir e angariasse a simpatia popular.
O califa abássida al-Ma'mun baixou um edito, declarando que o Alcorão tinha sido criado. Este edito foi confirmado por seus sucessores, Mu'tasim e Wathik, que condenaram todos aqueles que achavam o contrário. Mutawakhil (847d.C-861d.C) revogou o edito e acabou com as perseguições.
A maior disputa entre as duas posições, contudo, foi sobre a natureza de Deus e Seu controle sobre o destino do homem. Um exemplo de como ambos usavam o Alcorão aparece num debate entre o destacado qadariyah, Ghailan ibn Marwan, e o segundo califa ortodoxo omíada, Omar. O primeiro declarou que as palavras "Nós lhe mostramos o Caminho: seja ele grato ou ingrato" (Alcorão 76:3), eram para mostrar que o homem pode responder à orientação de Deus caso queira, mas em resposta o califa pediu-lhe que lesse as palavras "E quem quiser, poderá encaminhar-se até à senda do seu Senhor, porém só o conseguireis se Deus o permitir" (Alcorão 76:29-30), para provar o contrário.
Naqueles primórdios do Islam, os ortodoxos tomavam expressões como "a face de Allah" ao pé da letra e entendiam que Allah tinha criado com Suas mãos, olhado as coisas com Seus olhos e ouvido as preces com Seus ouvidos, de uma forma bastante literal. Foi contra esse antropomorfismo que os mutazilitas reagiram.
O mutazilismo acredita na unicidade absoluta de Deus, oposta ao dualismo e ao maniqueísmo e, por outro lado, nega a existência em Deus de qualquer atributo que não seja de Sua essência.
O conhecido sábio muçulmano Abu Mansur al-Baghdadi, em seu tratado sobre os vários sistemas "filosóficos" que se desenvolveram no Islam, sob o título de Al-Farq baynal-Firaq, definia a doutrina como "a negação de que Allah tem qualidades eternas; a afirmação de que Allah não tem conhecimento, poder, vida, audição, visão, nem qualquer atributo eterno; junto com a sua ideia de que Allah nunca teve um nome ou um atributo. Eles afirmavam, além do mais, que é impossível para Allah ver com Seus olhos. Eles dizem que Ele mesmo não vê e ninguém O vê" (V. Cismas e Seitas Muçulmanas, de Seelye).
A respeito da crença de que o homem tem o poder de determinar seu próprio destino, ele diz:
"Eles admitem, por outro lado, que é o homem quem
determina suas próprias questões, sem qualquer interferência da parte de Allah,
seja nas questões dos homens ou de qualquer ação dos animais ... Além do mais,
eles concordavam com a idéia de que nada nos atos de Seus servos, que Allah não
tivesse ordenado ou proibido, era desejado por Ele." (V. Cismas
e Seitas Muçulmanas, de Seelye).
O fim do mutalizismo chegou principalmente pela
influência de Abu'l Hasan Ali al-Ashari, que por muitos anos foi um mu'tazilita
fervoroso e que mais tarde tornou-se um ardente oponente. Ele foi capaz de usar
seu conhecimento de forma efetiva nos anos seguintes. Al-Ghazzali, o grande
teólogo muçulmano do século V, depois de Mohammad, também se opôs fortemente ao
movimento "filosófico" no Islam e particularmente atacava a crença mu'talizita
de que Allah só poderia ser descoberto através da razão e da reflexão.
Os esforços desse grande sábio de apagar o "livre pensamento" do Islam, de uma certa forma contribuiu para a estagnação formal do pensamento que se seguiu na história do Islam. Só mais recentemente, um grupo de sábios empreendeu, com coragem, a tarefa de desafiar as convicções conservadoras dos ortodoxos.